domingo, 4 de outubro de 2015

Seu Cristóvão das Pindobas

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Por *Helenita Monte de Hollanda 
Vou chamá-lo assim por achar bonito associá-lo ao elemento vegetal do qual quase faz parte tamanha é a interação em que vivem. Parece que o lugar se chama Tunda, mas às vezes a gente esquece ou confunde, porque grande é a quantidade de ilhas e
pontos do continente daquele jeito assim isolados em que paramos em nossas andanças.

Por egocêntrica, posso até admitir boçal, parto sempre de mim como referência - mas talvez seja auto impiedade dizê-lo: só não sei é escrever de outro jeito. E, assim, vou reconhecer que admirei as paisagens e me alegrei com o respingar refrescante das águas lançadas pelo motor do barco em meu rosto. Mas o que deu, o que dá sentido mesmo a toda aventura que procuro em meu peregrinar inquieto e inevitável, é a presença de figuras humanas como a de Seu Cristóvão e sua família.

Lá estava ele numa harmonia tão perfeita com o lugar de matas ainda virgens que, dele só poderia eu, sedenta e faminta, colher o doce e suculento fruto de sua história - história de trabalho e de família, dos seus amores, aqui suavemente conscientes, presentes, palpáveis bem ao alcance de sua mão.

Sim, tivera um tempo fora dali, parece mesmo que em capital, mas até o comentário é extemporâneo e traz feitio de dúvida - será que houve realmente um tempo de ausência? Quem sabe? Tempo leva é tudo!

Hora para trabalhar não há. Na renovação bimensal da palma da pindoba sobe Seu Cristovão a palmeira e tira, desfia, enfeixa, molha e vende a piaçaba e gosta muito disso. Ele e os outros homens daquele lugar improvável, impossível de visualizar na mais refinada ferramenta de pesquisa digital. Mas lá ele existe com a sua encantadora família ainda mais importante e amável que a piaçaba que os mantêm, que me encantou e da qual ganhei um tanto assim, pequeno, enfeixado pelas mãos santas de um trabalhador brasileiro, negro, naquela comunidade quilombola - um meu irmão, porque é a África a nossa mãe comum, o trabalho toda a nossa vida, a família o nosso respirar.

Volto-me para as crianças em brincadeiras risonhas, para as mulheres na lida, os meninos mais velhos vigiando os mais novos, para a casa em duas águas com anexo em taipa de mão que cristaliza as grossas impressões dactiloscópicas de toda a família. Dois casais. Elas, irmãs. Uma casa brasileira de quilombo, com panela de feijão na trempe, caçarolas e caldeirões em alumínio luzidio dependurados, saquinhos de batatas e tomates denunciando dia de feira e necessidade de trazer de fora alguns produtos; pote de barro de onde se serve água fresca.

Quanto acolhimento e gentileza! Fosse em outro lugar cerimônias e ramerrames teriam me frustrado muito, mas não ali onde pessoas de boa vontade sempre têm mais um prato para por à mesa, tamborete a nos convidar para um assunto, tempo de sobra para contar casos, toda disponibilidade do mundo... Convidam-nos para o almoço, para a prosa, para o nada fazer depois de comido o feijão, a farinha que nunca se deixa faltar, às vezes uma "mistura"...

Queria que o tempo parasse ali, naquele momento. E parou! Por alguns minutos - não chegou a hora a nossa permanência - tanta familiaridade nos uniu que saí, com os pés já encardidos e a mochila pesada, como quem abandona a casa paterna, como se nada além daquele espaço me chamasse à outra vida.

Necessidade minha de dar nome às coisas... Não foi uma visita nem um trabalho, eu, solicitada a fotografar os quilombolas em seu ambiente próprio. Há um nome num léxico distinto, mas preciso, exato. Chama-se COMUNHÃO o que vivemos naquele solo sagrado de trabalho, amor e respeito à natureza, principalmente à das pessoas. E parti redimida, salva, porque ali derramara-se não apenas o suor dos corpos, mas o sangue das veias de homens e mulheres em insano trabalho forçado fertilizando a terra. E mais uma vez o Amor se fez memória em sacrifício, também aqui nem sempre incruento, quase nunca indolor.

*Médica e escritora

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